segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Onde está o veneno?

Tenho um amigo que sempre diz que “o que mata não é a picada, mas sim o veneno”, numa alusão de que o “mal” não está necessariamente em determinado fato mas na forma como cada um, individualmente o assimila.

O futebol sempre foi uma excelente fonte de exemplos para que possamos tratar de questões não apenas sociais, mas também políticas e humanas, sendo um meio de possibilitar aos menos afortunados a criação de um caráter crítico, através do qual venham a questionar uma eventual tolerância, permissividade ou até mesmo apatia no seu costumeiro proceder.

Isso tanto é verdade que, atualmente, os programas esportivos destinam cada vez mais do seu tempo para a discussão sobre parcerias, negociatas, “lavagem” de dinheiro, e até mesmo para que se externe a indignação social do que em, efetivamente tratar do futebol, dos atletas e dos gols.

Em tela atualmente está a situação do Corinthians, uma das agremiações de maior torcida no país. Os programas paulistas dedicam, no mínimo, um de seus blocos para tratar dos desmandos feitos, dos procedimentos indevidos que oneraram a entidade e que lhe deram, pelo volumoso investimento à época, um campeonato nacional. Hoje o “timão” paga com juros maiores até do que os ilegalmente cobrados pelas instituições financeiras oficiais, tendo a parceria com a MSI gerado reflexos como a dilapidação de patrimônio da entidade e o “sucateamento” do elenco, lutando o time para não sucumbir a um possível rebaixamento.

Cada vez mais os noticiários esportivos estão parecidos com programas policiais. E a “farra” não pára, infelizmente. Em Brasília (cidade onde um Senador reconhecidamente culpado pela sociedade por uma série de atos questionáveis, fora recentemente inocentado através do “voto secreto” de seus pares, num claro corporativismo patrocinado por grupos políticos) atual alguns políticos e “lobistas” que representam a “bancada da bola”, pessoas que permitem, por exemplo, a existência da “timemania”, que é essencialmente uma loteria com cem “escudos” de times nacionais no lugar dos números de 1 a 100, cujo faturamento reverterá para a quitação de pendência de valores das entidades desportivas para com a União Federal.

As entidades esportivas, famosas pelos atos escusos nelas praticadas, receberam, após ter deliberadamente nada pago por anos à União, uma benesse do Poder Público, perdoando a reiterada e recorrente sonegação das mesmas. Já, um pequeno empresário “empregador”, pela instabilidade do mercado se vê prejudicado no pagamento de taxas e tributos, não consegue renegociar sua dívida.

Qual o critério dos governantes sobre tudo isso? Qual o critério do povo para evitar que isso siga ocorrendo? O brasileiro mediano apenas se lembra de sua condição patriota de quatro em quatro anos e não nas eleições, onde deveria evitar votar naqueles que seguidamente praticam atos questionáveis, mas apenas na época da Copa do Mundo. Enquanto isso o brasileiro que se considera responsável e consciente, segue com a conduta tipicamente “blasè”, arrogantemente evitando manifestar-se sobre tais fatos.

Escrevi até aqui e nada de futebol falei ainda! No entanto, falamos de bastidores, da política, de “lobistas”, e do pouco caso que nossa sociedade faz com tudo isso.

Recentemente o jogador cruzeirense Kérlon, o “foca”, moleque ainda, após seu time ter dado a “volta por cima” sobre o Atlético Mineiro, no clássico local, levanta a bola e, com a cabeça a leva em direção à área, fazendo uma jogada efetiva e não uma simples alegoria, até ser violentamente atingido pelo lateral Coelho que justificou dizendo que aquilo se tratava de “deboche” de desrespeito, ato covarde endossado, inclusive, por seu técnico, Émerson Leão.

Como podemos falar puramente de futebol enquanto não conseguimos acabar com tudo o de errado há em volta dele?

Garrincha embasbacava multidões com seus dribles desconcertantes! Muitos diziam que os mesmos eram "humilhantes" e ele, não somente era aplaudido por isso mas reconhecido, querido e idolatrado até hoje.

Atualmente o futebol reflete, dentro de campo, o melindre da sociedade. O mundo hoje é dos hipócritas politicamente corretos que, exigem a supressão não apenas do futebol mas do convívio social, de considerações ácidas, engraçadas, espirituosas. Essa corja de recalcados busca disseminar uma sociedade cinza, sem emoções, sem personalidade, onde todos pensem igual e que, resignados, aceitem a apatia como máxima.

O que será do futebol quando continuar sendo “proibido” o drible? Como podem os treinadores demover jovens talentos de externar sua qualidade, buscando uma seriedade, uma coerência cujas entidades desportivas não tem a moral de impor? E mesmo que tivessem, como proibir o “ato humano”, o imprevisível, a magia do futebol de existir?

O lance do Kérlon representa a rebeldia contra o que existe e comprova a falta de recursos dos atuais jogadores brasileiros que, incapazes de fazer uma marcação eficaz, recorrem à violência para “matar a jogada”, muitas vezes, sob orientação e ordem dos próprios treinadores.

No caso Kérlon, o “veneno” não está no drible, mas sim na indignação do defensor em ser incapaz de parar essa determinada jogada. Por isso, usa a violência e se justifica indevidamente alegando uma “honra” que não demonstrou quando do fato.

No caso da “timemania”, o “veneno” está na incapacidade e permissividade do Estado em cobrar daqueles que sonegaram tributos e taxas por anos a fio, premiando os mesmos com um benefício que não concedem, como disse, a pequenos empresários endividados. Muitos defensores dessa loteria olvidam-se que antes disso, essas mesmas agremiações tiveram vários benefícios, não aproveitados pelas entidades desportivas que seguiam não cumprindo com suas obrigações, sendo, o dinheiro destinado a outros fins, muitas vezes nada nobres.

E o torcedor não percebe ainda que a maior parte do valor recolhido será destinada aos “grandes times de outrora”, alguns deles, hoje penando para seguir na elite do futebol nacional, como Corinthians e Flamengo, por exemplo.

E no que tange à sociedade, onde estaria o “veneno”? Estaria na crença de que nada pode fazer para modificar o sistema, na certeza de que as coisas seguirão como estão face os interesses de grupos e entidades economicamente influentes, ou na simples apatia já institucionalizada?

O que mata é a resignação, é a inércia; é a descrença em tudo, no próximo, e pior, em si mesmo. Agimos como párias sob uma bandeira em território administrado por déspotas anarquistas e onipotentes, certos de sua impunidade.

Que o “efeito Kérlon” tome conta de todos, eleve os espíritos de muitos para que reflitam sobre o que ocorre e se não vale a pena buscar o diferente, o algo mais. Que assim, driblemos nossos medos, nossa apatia, nossa resignação e busquemos exigir de quem de direito faça o que deve ser feito, e também que sejam transparentes, que fiscalizem “abertamente” os demais, até que a publicidade de atos e procedimentos seja a máxima, o padrão adotado.

O antídoto se faz do veneno. Um Estado desorganizado é o reflexo de uma sociedade idem. No mundo do futebol o que vemos é a conseqüência de anos de práticas que jamais ocorreriam na esfera empresaria. O veneno está aí, todos os dias e, embora nos corroa por dentro, nada fazemos buscando o antídoto, preferimos a resignação, o “nada-fazer”, o “deixar como está”, a simplesmente nos organizarmos e buscar que as coisas sejam feitas como deveriam.

Quem sabe um dia, após afastarmos tudo o que de podre existe na sociedade, possamos a exigir do mundo do futebol a mesma transparência, e assim, apenas tratar do tema de forma técnica, tática, ou mesmo lúdica.

O antídoto para os males que nos acometem está em cada um de nós.

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